quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

(crítica – disco) Eliane Radigue – Transamorem–Transmortem (2011 [1973]; Important, EUA [França])




























1.
Parece consensual a percepção de que algumas obras e artistas demandam um tempo determinado para germinar na consciência da época, em virtude de uma série de fatores, técnicos, estéticos, filosóficos. Richard Wagner costumava lidar com o fracasso, tantas foram as vezes que, em busca de “obra de arte total”, esbarrava em dificuldades técnicas ou financeiras. Há também os entraves contextuais, em relação aos quais algumas obras descansam por anos, décadas e até séculos para encontrar seus interlocutores — ainda que nos dias de hoje, diante do volume monumental de produção, não se possa prever como se darão esses reajustes no futuro. Assim, vale sublinhar uma modalidade de reajuste técnico e estético que emergiu nos últimos anos a reboque da fragmentação da reprodução e do formato: a transliteração técnica do conceito de uma obra em outros modos de exposição, influindo decisivamente sobre o seu significado. 

2.
Desde 2004, o músico e pesquisador Emmanuel Holterbach organiza os arquivos da compositora francesa Eliane Radigue. Há mais de 40 anos, Radigue experimenta na seara da música eletrônica e eletroacústica, aprendiz e parceira de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, e é uma dos grandes nomes a emergir do interesse arqueológico que reabilitou os pioneiros da produção musical eletro-eletrônica, como Catherine Christer Hennix, Daphne Oram, entre outros. O reconhecimento de seu pioneirismo lhe rendeu uma ampla retrospectiva em Londres, no ano passado. 

Concebida em 1973, “Transamorem-Transmortem” foi apresentada uma única vez por Eliane Radigue em Nova Iorque, no ano de 1974. Acompanhando as instruções referentes à execução da peça, composta no sintetizador ARP 2500, uma digressão acerca da abertura de um “espaço interior”.

“Esta fita monofônica deve ser executada em 4 alto-falantes dispostos nos quatro cantos de uma sala vazia. Tapete no chão. A impressão de diferentes pontos de origem do som é produzido pela localização das várias zonas de frequências, e pelos deslocamentos produzidos por movimentos simples da cabeça dentro do espaço acústico da sala. Um baixo ponto de luz no teto, no centro da sala, produzido pela iluminação indireta. Vários projetores de luz branca de intensidade muito fraca cujos raios, vindo de ângulos diferentes, se encontram em um único ponto.” (Eliane Radigue, 1973)














3.
Trata-se, portanto, de uma peça que explora a espacialidade em dois níveis. Primeiro, a espacialidade objetiva através da qual o som se propaga e cuja modulação propicia formas variadas de emissão das frequências. Mas também o “espaço interior”, que diz respeito não somente às alterações decorrentes dos deslocamentos do indivíduo no ambiente, como também aos efeitos subjetivos desses mesmos deslocamentos. A partir do release editado pelo site da Important Records, podemos perguntar: como escutar de forma remota uma obra composta para a apreciação in loco, constrangendo o ouvinte a seguir os limites impostos pelo formato-disco? Em outras palavras, como escutar uma obra com alto teor sinestésico como “Transamorem-Transmortem”, que implica em uma série de cuidados e prescrições, mas que se apresenta agora comprimida no formato-CD? Quando, em suma, uma obra elaborada para manifestar-se através de uma relevo sonoro acidentado e minuciosamente programado, além de portar uma grande abertura para o acaso, é transposta para o território limitado e aplainado do CD?

4. 
A transliteração – ou, em outros termos, a “licença poética” – que permite levar os pressupostos de “Transamorem-Transmortem” para o CD, diz respeito mais ao seu aspecto conceitual do que ao substrato propriamente sonoro. Não se pode acessar a mesma experiência através do CD, de modo que só podemos apreendê-la como uma outra experiência, que ainda assim, permanece batizada como “Transamorem–Transmortem”. E como se pode resumi-la, mesmo sem acessar suas prescrições primordiais? A julgar pela audição da peça, realizada com fone de ouvidos, arriscaria a hipótese de que a espacialidade subjetiva da obra “original” é ampliada pela compressão do formato-CD. Por mais que se perca o jogo com as frequências, produto do deslocamento do ouvinte no espaço, sublinha-se o caráter harmônico e letárgico da composição. Em uma hora e sete minutos de duração, Radigue explora a continuidade subjetiva mais do que o espaço objetivo, ainda que com pequenos movimentos de corpo – ou com o fone – sobressaiam as frequências mais agudas – experimente, por exemplo, levantar uma das abas do fone ou comprimi-lo contra o ouvido.

Vale ressaltar que apenas com o advento do CD, que comporta longas durações de forma contínua, a obra de Eliane Radigue pôde ser devidamente registrada e editada para lançamento. Esta possibilidade nos revela o talento de uma artista que sabe manipular o conceito e a técnica no mesmo passo, além de revelar um talento poético e abstrato para talhar as sonoridades com talento de escultora. Mas, acima de tudo, “Transamorem–Transmortem” é uma experiência atordoante, testemunha do talento inominável de uma artista que chegou a hesitar em utilizar a palavra “música” para definir seu trabalho.



Um comentário:

Hank disse...

eu coloquei "Transamorem" pra tocar aqui e minha gata ficou meio bolada, olhando só pra um canto na parede...