quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

(ensaio) A Ofensiva Cultural: Compartilhamento de Arquivos, Audiofilia e Capitalismo (parte II)






















I. Crise do Formato

Na primeira parte busquei identificar a modulação do valor da mercadoria, particularmente no que diz respeito ao compartilhamento online de arquivos digitais, que se apresenta sob o seguinte paradoxo: a mercadoria “tornou-se maleável em relação à cultura local, em desacordo com regras impostas pela linguagem universalizante do mercado.” A fricção entre universalidade abstrata do deusmercado (com a moral em baixa…) e o turbilhão libidinal proveniente das diversas culturas, implodiu a própria noção de mercadoria. EMI? Som Livre? Contrato? “Advanced”? Charts, jabáculês e demais dispositivos de manipulação? E o que restou disso tudo, se não a própria música

Otimismo? Talvez. No entanto, não importa que você seja um otimista ou um pessimista, um cínico ou um militante, pois com relação a esse assunto estamos implicados em um futuro que coabita o presente e se debate com o passado, para o qual se buscam respostas que nunca virão de forma ampla e definitiva. A respeito de um tema que anda em voga, a autoria, percebe-se que um campo de batalha marcado por questões insolúveis e disputas vacilantes, alvejado  diariamente de forma implacável por situações com um alto grau de ineditismo. Neste contexto, alguns veem um prejuízo irreversível para as noções de obra e autoria, com o agravante de que, para o autor propriamente dito (o compositor, o escritor, o roteirista), a vida nunca foi fácil...

Não obstante, a defesa da autoria aderiu ao liberalismo como mais uma tentativa de naturalização do capitalismo, devidamente acompanhada pela força policial e o serviço secreto. Porém, dificilmente se pode ignorar as objeções pertinentes de Bernardo Carvalho, um dos poucos a fazer um defesa da autoria de forma a extrair consequências plausíveis de um futuro que já está aqui, mas que não equacionamos devidamente. E, em sentido oposto, Hermano Vianna contribuiu para desconstruir a universalidade aparente do direito autoral, descentralizando o sentido vigente da expressão, citando um ensaio do antropólogo Alexandre Nodari, que expõe a relação conflituosa entre a posse e propriedade.

Nesse debate, porém, a discussão acerca da relação ambígua do autor com o valor-mercadoria ficou de fora. Flexibilizando ou conservando os direitos autorais, ainda assim conserva-se, de ambos os lados, uma forma de se escutar a música gravada. Assim, convém sublinhar a aderência imediata do autor à mercadoria universal, sob a forma de um modelo específico de apresentação: o formato, não o contrato. Independente da internet e do "contrato", o autor pereceria no sistema montado pelas grandes empresas na medida em que a petrificação do formato já lhe prejudicaria – antes da internet, compactos, singles e outros formatos menores, adequados para autores menos conhecidos, já eram coisa rara no Brasil... Portanto, não é a ausência de leis ou o seu descumprimento que prejudica os autores e a indústria, muito menos a flexibilização das relações comerciais, mas a cumplicidade cínica entre autores, indústria e uma noção comum do que vem a ser a “forma-mercadoria”. É o apego oportunista à mercadoria clássica, fundada sobre a noção de propriedade e apresentação material, o elemento cambiante que joga todo esse universo em uma crise sem precedentes.


II. Autoria/Audiofilias

Em contraponto a esta guerra, um grupo de jornalistas e pensadores insistem em defender o legado histórico e político do capitalismo anglo-saxão sob a perspectiva de elementos que são mais produto de um desenvolvimento ulterior do que propriamente o centro do universo. Me refiro à cultura audiófila anglo-saxã, que submete a vivacidade desses conflitos à prerrogativas técnicas e culturais, sedimentadas sobre o termo "audiofilia". Por isso gostaria de me ater a um exemplo determinado, no sentido de demonstrar ao leitor de que forma a maleabilidade dos formatos, da estética, das trocas culturais, políticas e econômicas, pode criar as condições para que eclodam soluções singulares, de maneira a repercutir no modo como as pessoas avaliam sua relação com a arte e seus respectivos suportes.

No caso da música, essa questão ressoa de forma particular, mais do que no cinema e nas demais artes. Não só porque os sons estranhos, ocasionados por dificuldades técnicas de amplificação e reprodução, podem ser incorporadas à concepção musical, como no caso do Konono N.1 – na medida em que o timbre estridente das kalimbas do grupo congolês é resultado da experiência "mal-sucedida" de amplificação. Mas porque indica que o contexo audiófilo comporta toda sorte de experiências, respaldando-se nas respectivas formas de se escutar e reproduzir a música.

Muitas vezes os processos de registro e reprodução são marcados pelo desequilíbrio, reproduzindo sonoridades sujas, fora de rotação, degeneradas, mixadas em tecnologias arcaicas, marcadas pela vulnerabilidade material do suporte diante dos maus tratos, entre outras características. Mas, ao mesmo tempo, encerram valores específicos que indicam outros modos de escuta. De tal forma que vale perguntar: diante da desconfiguração do formato na interação entre cultura digital e cultura online (pois elas não são correspondentes!), é possível cogitar a audiofilia como um campo de disputa? O que pode a apropriação criativa da tecnologia intermediária contra a grande indústria que sustenta a cultura audiófila ocidental, responsável pela aceleração do processo de produção tecnológica?




III. Encontrar uma arma...


No final do ano passado, correu à boca pequena o primeiro volume de uma compilação chamada Music from Saharan Cellphones Vol. 1, editado através do blog Sahelsounds. O americano Christopher Kirkley, responsável pelo blog, viajou para a Mauritânia e coletou MP3 extraídos de cartões de memória de telefones celulares, vendidos e trocados em feiras populares. Nessas localidades, na falta de computadores pessoais e internet banda larga, os celulares servem como suporte para armazenamento de dados e troca de informação digital. Através de conexões bluetooth, a troca de MP3 é intensa, o que incrementa a divulgação de um farto e precioso material musical oriundo da África Ocidental, como também nos traz mais um contra-exemplo de como a necessidade – a “escassez”, como escreveu Mark Richardson em artigo para a Pitchfork – pode fundar formas pregnantes de relação com a mercadoria. Este contexto propicia o amplo e irrestrito intercâmbio sonoro, fundado sobre outras bases de negociação política, estética e comercial.

Estética porque essa música, anteriormente escondida em condições extremas em lojas e espaços de armazenamento “presencial”, retornou à circulação com um raio de alcance bem maior, que extrapola o contexto africano. Os resultados da confluência de ritmos e estilos ainda serão medidos conforme a música influenciar o resto do mundo, tal como ocorreu com artistas americanos e ingleses, como Vampire Weekend, Franz Ferdinand ou Damon Albarn. Music from Saharan Cellphones Vol. 2 trouxe mais uma seleção de faixas da Mauritânia, a leste de Shinqit, mas não se sabia ao certo se havia uma procedência musical determinada, falha agravada pela ausência de informação nos pentes de memória, mas suprida parcialmente por trocas de informação pelo Facebook entre Kirkley e amigos.




O evento aparente traz consigo um conjunto de situações peculiares, comparado ao tipo de relação que o mundo ocidental desenvolvido mantém com a mercadoria. Alguns elementos que constituem o fenômeno são:
a) troca de arquivos sonoros através de conexão bluetooth, armazenados em cartões de memória para celulares;
b) conteúdo diversificado, na maioria contendo música da África Ocidental – afrobeat, salsa de Dakar, Highlife, Funana do Cabo Verde, Mbalax do Senegal, blues tamasheq, sintetizadores africanos como na excelente “Autotune”, do Níger, etc.
c) Faixas sem nome; disposição das faixas desvinculadas de álbuns e demais formatos consolidados nos grandes mercados;
d) resolução sonora relativa, embora muitas vezes haja uma variação considerável no resultado da digitalização de fitas cassetes e elepês.

Christopher Kirkley


Em cada um dos cartões de memória trocado nas feiras da Mauritânia e do Mali, podemos acessar uma avalanche sonora, mas Kirkley fez uma seleção particular para os dois volumes de Music from Saharan Cellphones. Para cada uma das faixas que integram a coletânea, pode-se supor uma imensa e longeva cadeia produtiva que perfaz este processo:

a) Os músicos e técnicos que realizaram a gravação;
b) Os profissionais que fizeram a arte gráfica, prensagem e distribuição;
c) A venda, a loja, os funcionários;
d) A sucessão de percalços que levam os álbuns a percorrerem um verdadeiro calvário até parar em alguma coleção europeia ou em um cartão de memória, tal como o balão vermelho de Hou Hsiao-hsien (para uma história dos objetos…) – ou, ainda, na coleção empoeirada de Ahmed Vall, dono da loja Saphire D'Or.
e) Convém destacar o trabalho de Kirkley, que viaja para os países da África Ocidental compilando músicas e registrando práticas artísticas e comerciais.
f) O Megaupload demais serviços de armazenamento de dados, que possibilitam a disseminação dos arquivos.
g) E os serviços de internet pelo mundo inteiro – o que em certa medida decide pela economia de downloads em cada região do planeta.


















Pois, seguindo essas pistas, evitando situá-las à contraluz do valor-mercadoria, chegamos a uma cultura audiófila diferente em relação a que é preconizada pela perspectiva anglo-saxã. Não somente uma outra perspectiva “musical” (melômana), mas uma outra perspectiva “audiófila”. Nem uma perspectiva evolutiva, nem uma perspectiva exótica, mas a própria perspectiva, imanente e insubstituível. O prazer, a fruição, a religiosidade, o mercado, a miséria, e uma tradição musical antiga e multifacetada, somadas às condições políticas, técno-tecnológicas e históricas, resultam em uma fragmentação radical da perspectiva audiófila, compartilhada por uma variedade de segmentos.

Esta fragmentação contrasta com a submissão ao valor-mercadoria convencional, prescrita pelos ideólogos do desenvolvimento, a respeito dos quais os povos africanos devem ter as piores opiniões. Se por um lado, o colonialismo ressoa na cultura africana sob a forma do ressentimento e do prejuízo psicológico ("O mais grave é que a miséria material se transformou em miséria afetiva e psicológica", como afirma Célestin Monga), não se pode negar a forma extremamente criativa com que a África Ocidental vem criando suas "linhas de fuga".

Com este argumento, não pretendo desvalorizar a reflexão a respeito das perdas de frequências, fidelidade, etc, ocasionadas pelo hábito de se escutar música no computador. Mas existem ganhos que não são passíveis de uma avaliação puramente técnica. Por este motivo a audiofilia não deve ser abordada como um conceito absoluto, meramente técnico ou histórico, uma tendência geek que valeria por si só. Antes, convém apreciá-la como uma noção antropológica, que comporta muitas possibilidades de relação com a escuta. É uma tendência da escuta – das muitas escutas possíveis – ambientar-se no seu universo sonoro específico e contingente, tanto no que diz respeito às demandas estéticas, quanto nas relações possíveis com o formato, o suporte, a resolução e o tipo de aparelho que opera a execução das faixas. A virtude aqui consiste em encontrar um conjunto de soluções culturais e ambientar-se nele de forma positiva, a despeito da precariedade técnica e da miséria. 

A "burguesia assalariada" não compreendeu que no capitalismo contemporâneo, o “lucro virou renda”, ocasionando a sobrecodificação desproporcional da mercadoria. E, no entanto, há uma contrapartida evidente em relação a esse tipo de apropriação, mesmo que ainda emerja sob o signo de uma nova hegemonia da comunicação, capitaneada pelo Google e o Facebook. A despeito de toda a polêmica a respeito da política de privacidade duvidosa dessas empresas, há que se reconhecer que ao menos promovem uma dinâmica cognitiva mais estimulante e abertas às linhas de fuga. Traçar uma linha de fuga corresponde a “produzir algo real, criar vida, encontrar uma arma”, e não se perder no imaginário... São exemplos de como a própria ausência de uma regulação mais rígida pode gerar situações alternativas (e factíveis) às que são hoje oferecidas pela grande indústria.

Bernardo Oliveira

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

(crítica – disco) Eliane Radigue – Transamorem–Transmortem (2011 [1973]; Important, EUA [França])




























1.
Parece consensual a percepção de que algumas obras e artistas demandam um tempo determinado para germinar na consciência da época, em virtude de uma série de fatores, técnicos, estéticos, filosóficos. Richard Wagner costumava lidar com o fracasso, tantas foram as vezes que, em busca de “obra de arte total”, esbarrava em dificuldades técnicas ou financeiras. Há também os entraves contextuais, em relação aos quais algumas obras descansam por anos, décadas e até séculos para encontrar seus interlocutores — ainda que nos dias de hoje, diante do volume monumental de produção, não se possa prever como se darão esses reajustes no futuro. Assim, vale sublinhar uma modalidade de reajuste técnico e estético que emergiu nos últimos anos a reboque da fragmentação da reprodução e do formato: a transliteração técnica do conceito de uma obra em outros modos de exposição, influindo decisivamente sobre o seu significado. 

2.
Desde 2004, o músico e pesquisador Emmanuel Holterbach organiza os arquivos da compositora francesa Eliane Radigue. Há mais de 40 anos, Radigue experimenta na seara da música eletrônica e eletroacústica, aprendiz e parceira de Pierre Schaeffer e Pierre Henry, e é uma dos grandes nomes a emergir do interesse arqueológico que reabilitou os pioneiros da produção musical eletro-eletrônica, como Catherine Christer Hennix, Daphne Oram, entre outros. O reconhecimento de seu pioneirismo lhe rendeu uma ampla retrospectiva em Londres, no ano passado. 

Concebida em 1973, “Transamorem-Transmortem” foi apresentada uma única vez por Eliane Radigue em Nova Iorque, no ano de 1974. Acompanhando as instruções referentes à execução da peça, composta no sintetizador ARP 2500, uma digressão acerca da abertura de um “espaço interior”.

“Esta fita monofônica deve ser executada em 4 alto-falantes dispostos nos quatro cantos de uma sala vazia. Tapete no chão. A impressão de diferentes pontos de origem do som é produzido pela localização das várias zonas de frequências, e pelos deslocamentos produzidos por movimentos simples da cabeça dentro do espaço acústico da sala. Um baixo ponto de luz no teto, no centro da sala, produzido pela iluminação indireta. Vários projetores de luz branca de intensidade muito fraca cujos raios, vindo de ângulos diferentes, se encontram em um único ponto.” (Eliane Radigue, 1973)














3.
Trata-se, portanto, de uma peça que explora a espacialidade em dois níveis. Primeiro, a espacialidade objetiva através da qual o som se propaga e cuja modulação propicia formas variadas de emissão das frequências. Mas também o “espaço interior”, que diz respeito não somente às alterações decorrentes dos deslocamentos do indivíduo no ambiente, como também aos efeitos subjetivos desses mesmos deslocamentos. A partir do release editado pelo site da Important Records, podemos perguntar: como escutar de forma remota uma obra composta para a apreciação in loco, constrangendo o ouvinte a seguir os limites impostos pelo formato-disco? Em outras palavras, como escutar uma obra com alto teor sinestésico como “Transamorem-Transmortem”, que implica em uma série de cuidados e prescrições, mas que se apresenta agora comprimida no formato-CD? Quando, em suma, uma obra elaborada para manifestar-se através de uma relevo sonoro acidentado e minuciosamente programado, além de portar uma grande abertura para o acaso, é transposta para o território limitado e aplainado do CD?

4. 
A transliteração – ou, em outros termos, a “licença poética” – que permite levar os pressupostos de “Transamorem-Transmortem” para o CD, diz respeito mais ao seu aspecto conceitual do que ao substrato propriamente sonoro. Não se pode acessar a mesma experiência através do CD, de modo que só podemos apreendê-la como uma outra experiência, que ainda assim, permanece batizada como “Transamorem–Transmortem”. E como se pode resumi-la, mesmo sem acessar suas prescrições primordiais? A julgar pela audição da peça, realizada com fone de ouvidos, arriscaria a hipótese de que a espacialidade subjetiva da obra “original” é ampliada pela compressão do formato-CD. Por mais que se perca o jogo com as frequências, produto do deslocamento do ouvinte no espaço, sublinha-se o caráter harmônico e letárgico da composição. Em uma hora e sete minutos de duração, Radigue explora a continuidade subjetiva mais do que o espaço objetivo, ainda que com pequenos movimentos de corpo – ou com o fone – sobressaiam as frequências mais agudas – experimente, por exemplo, levantar uma das abas do fone ou comprimi-lo contra o ouvido.

Vale ressaltar que apenas com o advento do CD, que comporta longas durações de forma contínua, a obra de Eliane Radigue pôde ser devidamente registrada e editada para lançamento. Esta possibilidade nos revela o talento de uma artista que sabe manipular o conceito e a técnica no mesmo passo, além de revelar um talento poético e abstrato para talhar as sonoridades com talento de escultora. Mas, acima de tudo, “Transamorem–Transmortem” é uma experiência atordoante, testemunha do talento inominável de uma artista que chegou a hesitar em utilizar a palavra “música” para definir seu trabalho.



quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

(crítica – disco) Siba – Avante (2012; s/g, Brasil)
























São muitas as virtudes que fazem o grande artista, e muitas são as perspectivas quando se trata de arte. Porém, pelo menos em nossa era, o grande artista é aquele que consegue, a partir de um material dado, dar à luz um recorte singular, seja referindo-se, seja desprendendo-se daquilo que lhe é legado. O debate acerca da possibilidade de emergência do “novo”, que se arrasta durante todo o século XX e invade o XXI sem pedir licença, resta carente de argumentos, pois não existe outra possibilidade para definir a criação humana que não se dê a partir de uma tensão entre o que já se passou e o que virá:

“Na descompressão do grito
De liberdade e revolta
Se abriram os portões pesados
Um touro bravo se solta
Quem parte berrando: avante!
Pode cair mas não voltar” (“Avante”)

Em Avante, Siba fornece mais argumentos para se inscrever com folga no rol dos artistas que conseguem parir o “novo”. Como no trabalho anterior, Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (sem contar a parceria com Roberto Corrêa), o “cantautor” se destaca por obter conceitos e sonoridades próprios, sobretudo em relação ao substrato de suas canções, referente a gêneros nordestinos como a toada, o coco, o maracatu, o galope, entre outros. E o que é então esse “novo”? Ele se resume ao grito de “avante!” que batiza o álbum? Ou se refere à reabilitação dos gêneros abordados, prescritos aos guetos folcloristas? Trata-se portanto de uma motivação? De uma pesquisa? De uma inspiração sem maiores consequências? Reflexo de uma história pessoal? Todos os itens acima? A resposta vem sob a forma de poesia: o turbilhão dos acontecimentos pode ser representado pela imagem de um touro que se desprende, e a criação humana como esses indivíduos que partem berrando “avante!”, e que podem cair, mas não voltam…

Conceitualmente, seu trabalho se constitui a partir de dois movimentos, e isto se pode afirmar tanto de Avante, como dos discos anteriores. Primeiro, apropriar-se dos gêneros listados acima com naturalidade, tal como se trabalha com o rock, o samba e o reggae, compondo canções com temáticas variadas. Em segundo, experimentar na roupagem sonora, modificando-a conforme o conceito do álbum. Se no disco anterior, o grupo regional se mostrava adequado, desta vez Siba escalou Leo Gervázio, integrante da Fuloresta, na tuba, Samuel Fraga na bateria e Antônio Loureiro no vibrafone e teclados, além de tocar guitarra e viola. Produzido por pelo compositor, instrumentista e produtor Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Avante se destaca pela inserção de vibrafone, tuba e guitarra nos arranjos, que resulta em uma sonoridade coesa, porém multifacetada. Tal combinação suscita nexos com a música pernambucana dos anos 70, o rock’n’roll dos 60, a jovem guarda, Cidadão Instigado e até mesmo hardcore (em "Canoa Furada"), mas guarda também a singularidade do diálogo instrumental, como se pode ouvir na sensacional combinação de guitarra distorcida e vibrafone na faixa-título, e na simbiose de afrobeat e maracatu na lírica de “Qasida”. Destaque para a vinheta “Mute/Um Verso Preso”, cuja textura demonstra as habilidades instrumentais de Siba, capaz de sintetizar rock’n’roll e viola nordestina nas guitarras – habilidade também perceptível nos pontuamentos "guitarrísticos" em “Avante”.



Envolvendo essa dupla característica, a sensibilidade excepcional de poeta, capaz de exprimir humor e plasticidade em versos como os de “Canoa Furada” (“E a canoa velha deixou/Muita água minar/Eu nunca aprendi a nadar/Será que essa água é molhada ?”), melancolia, como em “Brisa” (“A brisa, por ser carinhosa, é quem mais tem castigado”), e delírio, como em “Preparando o Salto”:

“Não vejo nada que não tenha desabado
Nem mesmo entendo como estou de pé
Olhando um outro num espelho estilhaçado
Que reconheço mas não sei quem é”

O exercício original da métrica e da rima, muitas vezes organizadas em formato entrelaçado, como em “Qasida”, “Canto de Ciranda na Beira do Mar” e “Ariana”, reforça a temática cotidiana, reiterando a visão particular do autor. Constituída por imagens oníricas, que contraditoriamente se desprendem do caráter aparentemente coloquial dos versos, a poesia de Siba manifesta a consciência ao mesmo tempo trágica e ferina de poetas nordestinos como Jorge de Lima ou Patativa do Assaré. Mas aqui, o trágico não se configura como sinônimo de tragédia ou mau agouro, mas uma compreensão do infinito, para além do bem e do mal…

“Imagens são balões presos
Por um cordão que se tora
Porque poesia é presença
De um vulto que não demora
O canto espalha no vento
E o tempo desfaz na hora.”

… e que também opera na seara do nonsense, criando impagáveis gags visuais como em “A Bagaceira”:

“No fim da bagaceira
Minha vista escureceu
Se alguém souber meu nome
Diga pra mim quem sou eu
Vou dormir na calçada
Abraçado a um cachorro
Pra uma alma sebosa
Me levar carteira e gorro
E ainda se dá mal
Pois não tem um real
Pode acabar-se o mundo
Vou brincar meu carnaval”



















À vontade entre a previsibilidade e a diferença, Avante confirma o talento de “cantautor”, apto a transfigurar o legado riquíssimo, deixado de lado pelas bandas “sudestinas”. Por fim, vale retomar a questão do primeiro parágrafo: o novo não é algo que irrompeu em tempos imemoriais para nunca mais voltar, mas, consequência inevitável, que surge no trabalho de alguns indivíduos que conseguem enxergar para além do horizonte de expectativa da grande maioria. Um desses indíviduos é Siba e Avante é mais um documento que atesta sua visão privilegiada. 

Bernardo Oliveira