quarta-feira, 26 de março de 2014

The Speakers – En El Maravilloso Mundo de Ingeson (1968; Kris, Colômbia)

























Na segunda metade da década de 60, a situação sociocultural da juventude colombiana não se diferenciava tanto da vivida pelos brasileiros e, em geral, da maioria dos jovens sul americanos. A Instabilidade política do país em junção com o conservadorismo das classes média e alta, não criaram um ambiente propício para que houvesse a dissseminação e o desenvolvimento do rock e da cultura pop na intensidade desejada pelos jovens de Bogotá e Medellín. Apesar disso, muitos esforços (artisticamente relevantes mas, na sua maioria, fracassados comercialmente) foram feitos para que florescessem, na Colômbia, expressões artística legítimas e inovadoras norteadas pelo contexto da psicodelia, dos happenings e da contracultura britânica e norte-americana.

Dentre os grupos que levaram mais adiante esse intuito, imbuídos de um espírito criativo sem precedentes no rock colombiano, o The Speakers (que depois de 67 se autodenominavam Los Speakers) foi o que chegou mais longe no quesito de inovação — a libertação das limitações impostas pelas condições que os cercavam. Em 1968 foi gravada e lançada a obra-prima da banda, o disco En El Maravilloso Mundo de Ingeson. O nome é uma bem humorada referência ao estúdio no qual a banda gravou o disco. O acordo era: os Speakers poderiam, durante as noites, usufruir da moderna equipagem e os diversos instrumentos disponíveis sem pagar nada, mas o nome do estabelecimento deveria aparecer no título do álbum.

Já na sua quarta formação, em 1968, os Speakers eram: Roberto Fiorilli, baterista de origem italiana que já vinha fazendo grandes contribuições para o cenário bogotano como membro fundador de grupos como Los Young Beats e The Time Machine; Rodrigo García, guitarrista espanhol e membro fundador do Speakers em 1964; Humberto Monroy, baixista colombiano que, ao lado de Rodrigo García, fundou a banda e, durante toda sua carreira, foi uma das maiores forças criativas do rock colombiano.

O trio, então, trabalhando durante as madrugadas no estúdio da Ingeson, começou em Junho uma viagem que duraria 4 meses. No caminho passaram pelas sonoridades andinas, a instrumentação barroca, guitarras estridentes que berravam delicadamente, ritmos de marchas militares, percussões variadas e todo o tipo de efeito sonoro que conseguiram utilizar para criar, através de elementos mundanos e distorções dos mesmos, uma atmosfera de alucinação. Ao final dessa jornada, os Speakers criaram uma espressão única, uma explosão de lirismo e subversão emanando das densas matas da Amazônia colombiana.

O disco começa com um despreocupado cantarolar que se transforma em um breve grito de desespero, sendo prontamente silenciado pelo som de um trem correndo. O contraste, nesse momento, é contundente quando essa pequena rede de acontecimentos é abruptamente interrompida pelo elegante rufar de trompas, cornetas e um cravo, dando início a “Por La Mañana’’, canção de Rodrigo García que adentra, sem receio algum, no pop barroco e abre o disco. Precedida pelo som de uma caixa registradora, a explosiva “Oda A La Gente Medíocre’’, de Roberto Fiorilli, dá continuidade ao álbum. A suavidade é deixada de lado num primeiro momento. O riff estridente da guitarra de García, o acompanhamento preciso do baixo de Monroy e a bateria algo jazzística e algo avant-garde do autor do tema, que serve como base ininterrupta para a primeira parte da música, dão a textura ideal para que as proposições imperativas proclamadas por Fiorilli ecoem na mente de quem as escuta. A essência da mensagem artística da banda é bem representada nos versos da ode – “Abre tu miente a tiempo/Corta con el pasado/Vete hacia el futuro/Emplea tu fantasía/Liberate en este dia...”. Chegando a um clímax instrumental, “Oda a La Gente Medíocre’’ se transforma em um confuso diálogo de duas guitarras que deslizam sob o ritmo de percussões latinas e tambores árabes aliados da marcação intensa de Humberto, ao baixo. 

As duas primeira faixas são os extremos da obra, do lirismo inocente e contemplativo de “Por La Mañana” à gritante eletricidade de “Oda A La Gente Medíocre” estão contidas as diretrizes sonoras que o resto do disco irá seguir. Pela sua beleza melódica, destacam-se também as baladas de García “No Como Antes” e “Nosotros, Nuestra Arcadia, Nuestra Hermanita Pequeña, Gracias Por Los Buenos Ratos”. A última merece atenção especial, pois se trata de um tema instrumental guiado pela flauta doce de Fernando Acuña (músico dos estúdios Ingeson) e a guitarra pós-a go-go de Rodrigo García, passando por mudanças rítmicas que englobam o pop e a valsa. Pela parte de Humberto Monroy, é excepcional “Si la Guerra es un Buen Negócio, Invierte a tus Hijos”, canção irônica que apresenta um arranjo de tuba com sonoridade de coreto e uma certa alegria que contrasta com a crítica ferrenha feita pelo coro, cantando àqueles que apoiam as guerras (do Vietnã, principalmente) e veem valor nas condecorações militares. É notável em “Um Sueño Mágico”, também de Monroy, a ambientação quase apocalíptica feita pela banda. O abuso da distorção na guitarra e a bateria frenética de Fiorilli, aliados do sino de igreja marcando as mudanças de acorde, conferem à música um peso excepcional para a época. A última composição é “Salmo Siglo XX, Era De La Destruccion”. A canção de Roberto Fiorilli é como uma metonímia, uma crítica ao sucesso do primeiro projeto atômico do governo de Carlos Lleras Restrepo, então presidente da Colômbia, mas que traduz a sua mensagem de pacifista e antibelicista para o mundo.



É comum que o uso constante do efeito fuzz nas guitarras levem muitos a classificá-la como “garage-psych”, ou algum outro termo que se use para caracterizar o som das bandas psicodélicas sul-americanas da época. No entanto, vale notar que uma análise mais profunda da sonoridade do disco pode levar a outras conclusões. O uso que García faz do recurso citado aponta para uma outra sonoridade. Se comparações podem esclarecer, as linhas de guitarra em “Ode A La Gente Medíocre”, “Hay Um Extraño Esperando En La Puerta” e o solo de “Nosotros, Nuestra Arcadia...” apresentam um contraste entre peso e leveza, estridência e precisão que, nos anos 70, seria desenvolvido com maior particularidade por Robert Fripp em suas parcerias com o compositor Brian Eno: “No Pussyfooting” e “Evening Star”.


Em En El Maravilloso Mundo de Ingeson, os Speakers transcendem a sua época, seu contexto e qualquer rotulação de gênero que possa ser conferida a eles. A obra final do grupo é um passo adiante na produção cultural da América do Sul e uma expressão artística atemporal. Após o lançamento do disco, no entanto, a banda se separou. Rodrigo García retornou à Espanha para se juntar ao Los Pekenikes enquanto Humberto Monroy e Roberto Fiorilli permaneceram em Bogotá para fundar o Siglo Cero, grupo instrumental que deu início a um cenário mais diversificado e sofisticado na música pop colombiana.

Gabriel Marques

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