quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Espécies imaginárias: entrevista com Rashad Becker























Engenheiro de som, artista sonoro e compositor alemão de origem síria, Rashad Becker iniciou seus trabalhos com música ainda na década de 80. Em seguida, investiu em outros interesses, ingressando em uma escola de belas-artes e em um curso de medicina. Até que seu nome se tornou sinônimo de qualidade e competência técnica através de seu trabalho como engenheiro de corte e masterização de vinil no lendário estúdio Dubplates & Mastering de Berlim. Becker também dirige seu próprio estúdio, Clunk, contribuindo para a resolução sonora de uma gama monumental de artistas. Assinou a masterização de mais de 1200 trabalhos de nomes importantes como Masami Akita (Merzbow), Russell Haswell, Jaki Liebezeit, Plastikman, Ricardo Villalobos, Fantômas, Melt Banana, Florian Hecker, etc. “Eu gosto de estar cercado por linguagens que eu não compreendo”, afirmou Becker em entrevista à revista Wire no ano passado. De fato, sua trajetória indica um espírito exploratório sedento por novas experiências, técnicas e estéticas.

Em 2013, Becker lançou Traditional Music Of Notional Species Vol. I, seu primeiro disco solo, editado pelo selo alemão PAN, dirigido por seu parceiro Bill Kouligas. O álbum trazia um diálogo com ideias sonoras radicais, como se tateasse formas rítmicas alternativas aos compassos habituais. Texturas alienígenas e acidentadas, repletas de explosões, estalidos, fricções e outros distúrbios sonoros, ensaiam os cantos tradicionais de um povo imaginário. Na entrevista abaixo, realizada por email, Becker explica quem são as “espécies nocionais”, como seu trabalho técnico se relaciona com seu trabalho autoral, entre outros assuntos. (B.O.)

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É verdade que você iniciou seus trabalhos com música ainda na década de 80. Quais eram suas influências nessa época? Como soavam esses primeiros trabalhos?
É verdade. Minhas influências durante essa época eram o lado mais cru, diletante, atonal e não-machista do punk e do hardcore, as peças grotescas e peculiares da eletrônica alemã, o industrial britânico e algumas das coisas que eu acredito que posso me referir como “música de artista” ou música livre. Basicamente, o meu interesse principal se voltou para um tipo de música que conseguiu incorporar o conteúdo extra-musical, transformando-a em linguagem musical de uma forma não-didática, principalmente política, mas também obscura... Depois de tocar em algumas bandas de punk e hardcore, comecei a trabalhar com gravadores multitrackers, um Atari, um sampler e um dos synths eu ainda uso. O resultado foi bastante “narrativo” naquela época: peças longas, com muitas subseções e muitas referências à música industrial.

Em 2013, você lançou seu primeiro disco autoral, Traditional Music Of Notional Species Vol. I. Como nasceu e se desenvolveu esse trabalho? Foram anos coletando ideias ou elas surgiram mais recentemente?
Foram anos tentando encontrar um método para escrever música no qual eu pudesse me agarrar. Houve vários momentos controversos, mas uma vez encontrei uma estratégia de modo que a música surgiu muito rapidamente. Então, fui refinando as composições e a forma de situá-las em um conjunto coerente, tocando-as ao vivo por alguns anos.

Li a frase a seguir em uma entrevista para a Wire: “Você tem que saber o que você quer capturar antes de posicionar um microfone.” O que vem primeiro, a técnica ou a imaginação? O know-how técnico garante aquilo que a imaginação concebe?
Eu acho que podemos trabalhar com ambos os cenários, tanto a imaginação subjugada à tecnologia ou o contrário. Acredito que a história da música está repleta de exemplos em que a tecnologia disponível deu forma ao método de se escrever música. Mas também, obviamente, o contrário. Acredito, por exemplo, que o órgão nasceu da idéia dos compositores barrocos de incorporar notas prolongadas. Eles também não estavam tão interessados em dinâmica, daí nasceu o cravo. Mas quando o piano apareceu no final dos dias da vida de Bach, ele começou a incorporar a dinâmica dos pianos em suas obras.

Eu acho que isso poderia ser infinitamente discutido, mas sempre haverá algum tipo de informação mútua entre o método e tecnologia.

No entanto, o que eu queria expressar nessa entrevista é que eu acho que você deve ter uma idéia ou uma visão sobre que tipo de ficção que pretende produzir antes de se envolver com a tecnologia. A tecnologia vai necessariamente reformular a narrativa que você colocou em uma determinada ordem. Diante da forma como as plataformas digitais são construídas hoje em dia, se você mergulhar na tecnologia sem uma visão particular da música vai acabar colocando os mesmos sons nas mesmas estruturas e paisagens sonoras. As ferramentas são tão especializadas e conveniente que podem te empurrar para a conformidade.



Como engenheiro de corte e masterização de vinil no lendário Dubplates & Mastering de Berlim e diretor de seu próprio estúdio (Clunk), você contribuiu para a resolução sonora de uma porção de artistas. Como essa experiência técnica contribuiu em termos artísticos para Traditional Music Of Notional Species Vol. I? Como você define sua posição entre produção técnica e artística?
Acredito que esses dois campos são praticamente independentes um do outro. Trabalhar com as músicas de outras pessoas em qualquer estágio da produção envolve uma forma totalmente diferente de ouvir/escutar do que aquela que envolve o ato de se escrever uma música. Se eu estiver trabalhando na música de outro artista, o meu gosto realmente não entra em cena, muito menos a minha identidade cultural. Com relacão à música que faço, em um nivel técnico, gosto de criar com minhas próprias mãos os locais aptos a receberem minha musica, tenho muito cuidado com esse aspecto, pois salas com muita reverberação não são adequadas. Também não há a mesma obrigação em finalizar um trabalho autoral, da mesma forma como se deve finalizar um trabalho profissional. Quando estou trabalhando, me encontro em um estado de espírito muito diferente. Nesse sentido, não acho que haja uma posição entre essas duas dimensões, técnica e artística. Mantenho o meu trabalho distante da minha música da mesma maneira que mantenho a minha cultura fora do meu trabalho.

O álbum desenvolve formas rítmicas alternativas aos compassos habituais. Os timbres e harmonia também são estranhos, sem referências no universo sonoro contemporâneo. Você gostaria de ressaltar alguma técnica ou equipamento em particular que viabilizou esse universo particular de sons?
Meus ouvidos, eu acho... Minhas idéias sobre o que eu gosto… Não há nenhuma “mistery box”, prefiro usar sintetizadores antigos e espetaculares, basicamente três diferentes. Um deles eu tenho desde que eu tenho 18 anos, de forma que eu controlo praticamente tudo, desde a idéia até o resultado final.

O título do disco nos leva a imaginar que se tratam de cantos tradicionais de um povo imaginário. Sabemos que há a influência do canto gutural Inuit, da “música submarina” gravada por Douglas Quin, entre outras referências. Por favor, fale um pouco sobre essa característica alienígena? Quem são as “espécies nocionais”?
Trata-se apenas de uma maneira de escrever as peças. Primeiro concebo os sóciotipos (sociotopes) compilando atributos, características, condições e estados de espírito. Encontro uma espécie cujo conjunto de atributos me parece atraente, lhe dou um nome e, depois, me sento para sonorizar essa “entidades”. Finalmente tenho um conjunto de sons que resultam em uma composição. Gosto de escutar o modo como estes indivíduos imaginários soam enquanto entidades individuais, pois isso define o modo como irei articulá-los dentro do clima de uma peça (que, portanto, torna-se a representação de uma situação social ou ambiente).

O ritmo é algo muito importante em seu disco, embora não sejam ritmos regulares. Qual a importância do ritmo em Traditional Music Of Notional Species Vol. I.? 
Bem, obviamente, eu estou muito interessado em ritmo. Sou intrigado especificamente pela seguinte questão: as peças podem se manifestar sem um ritmo óbvio ou contável? Acho que este álbum se constitui, principalmente, a partir de longos arcos de padrões rítmicos.



Por que você dividiu o disco em “Danças” e “Temas”?
É uma maneira de dizer que, dentro do cenário fictício do álbum, as peças servem a uma função extra-musical, que pode ser um funeral ou um casamento, cânticos de invocação ou danças comunais. Penso que no volume II a divisão formal entre “temas” e “danças” será mais evidente. (risos)

Há uma melodia oriental na faixa “Themes III”, executada por um instrumento semelhante a um shamisen. Na faixa posterior, algo semelhante a uma voz esboça um canto bastante estranho. Haveria alguma motivação conceitual por trás dessas inserções pontuais?
Todos os elementos do álbum são sintéticos. Não há vozes ou instrumentos de verdade, não há samplers de qualquer espécie. Há um pouco de motivação conceitual por trás disso. Os sons sintéticos são potencialmente livres de qualquer legado idiomático e, portanto, constituem um instrumento mais delicado para se produzir uma ficção do que instrumentos tradicionais ou vozes. Sons sintéticos permitem a possibilidade de repensar princípios de realidade e ficção dentro do próprio som.

“Eu gosto de estar cercado por linguagens que eu não compreendo”, você afirmou em entrevista à revista Wire no ano passado. Como se dá esse processo de conversão entre uma linguagem que você não compreende e o momento em que você começa a manipulá-la?

Para mim um dos momentos cruciais de acesso a uma nova linguagem é quando você pode começar a produzir humor nessa estrutura. Eu acho que isso traduz bem a relação entre a música e os instrumentos musicais, quando você pode produzir algo deliberadamente humorístico, você desbloqueia o acesso a esse sistema e, ao mesmo tempo, cria o potencial para uma sinceridade autêntica.


RASHAD BECKER from URSSS on Vimeo.

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